As abominações do país: o assassinato do faraó Ramsés III

Por Ewerson Dubiela – Historiador do Museu Egípcio

Ramses Usermaatra Meryamon é conhecido por nós como Ramsés III. O faraó governou durante quase 32 anos, entre 1194 e 1163 a.C.[1] e foi o segundo rei da XX Dinastia (1196-1070 a.C.). Sua tumba original encontra-se na margem ocidental do Nilo, uma das dezenas escavadas na rocha, porém, o corpo acabou por ser removido pelos próprios egípcios antigos por conta dos roubos dos enxovais funerários, sendo encontrado no final do século XIX, em 1881, em um esconderijo real de Deir el-Bahari, denominado como DB320.

A múmia de Ramsés III está em excelente estado de conservação, fato observável a partir dos primeiros exames que ocorreram no Museu Nacional Egípcio, no Cairo, também em fins do século retrasado. A autópsia não pode identificar feridas, evidencias de sufocamento, estrangulamento ou envenenamento e, por isso, houve a ideia de que o governante pudesse ter morrido de uma doença chamada arteriosclerose. A partir de 2012, um grupo de pesquisadores[2] realizou diversos exames antropológicos, forenses, radiológicos e genéticos em múmias do Museu Nacional Egípcio, dentre elas, a de Ramsés III.

O corpo do faraó Ramsés III possui um tecido que envolve o pescoço. Conforme se aplicou o exame de Tomografia Axial Computadorizada, TAC, pôde-se observar um ferimento, produzido por uma lâmina afiada de quase 7 cm de comprimento. Tal ferimento se deu da 5ª até a 7ª vértebra, somando a destruição dos tecidos moles dessa área. O TAC identificou também que a cavidade do ferimento acabou por ser preenchida com materiais que os sacerdotes egípcios usavam na mumificação dos cadáveres. Entretanto, há um pequeno amuleto wdjat, olho de Hórus, de 15 mm colocado na abertura, a intenção poderia ser proporcionar integridade e saúde, além da reparação do dano através de magia.

De maneira mais recente, outro estudo[3] sugere que o assassinato se deu após luta, já que um dos dedões do pé do faraó foi decepado e o ferimento não teve tempo de cicatrizar. Assim, a possibilidade é que o ataque pode ter sido realizado por duas pessoas, uma pela frente de Ramsés III com uma espada ou machado e outra por trás do rei, atingindo-o com uma faca ou adaga no pescoço. É possível que esse episódio tivesse como objetivo não apenas a morte do governante, mas também a remoção do príncipe herdeiro, Ramsés[4].

As informações sobre a tentativa de assassinato do rei estão contidas em quatro papiros: Judicial de Turin, Rollin, Lee e Rifaud, sendo o primeiro o mais importante. É no papiro judicial de Turin que o episódio é denominado como “As abominações do país”, também anuncia os membros do tribunal e os jurados, além de apresentar uma primeira lista de acusados qualificados, cada um, como “Grande inimigo” e detalhar o envolvimento destes.

Sabe-se que o complô havia nascido no harém real, com a Grande Esposa, Tiye. Esta era mãe de um dos príncipes mais próximos à Ramsés III, Pentawera. Diversos funcionários reais e parentes destes estão relacionados com o regicídio, como Pabakkamen, que era chefe da câmara e dos lacaios do rei e Ashahebsed, seu assistente. No papiro se diz:

O Grande Inimigo Pabakkamen, que havia sido chefe da câmara. Foi traído por sua cumplicidade com Tiye e as mulheres do harém e por fazer causa comum com elas. Ele começou a levar as mensagens para fora, para as mães e os irmãos daquelas que se encontravam aqui, dizendo: ‘Levanta as gentes e incita a inimizade para que se rebelem contra o seu Senhor’.

O papiro judicial de Turin traz instruções prévias, audiências com veredictos, emissão de sentenças e execução dessas, também irregularidades como tentativas de suborno – general Payis a membros do tribunal. Aos condenados pelo assassinato do rei diversos tipos de punição foram aplicados: corporais, mágicas e morais.[5] Por fim, podemos nos perguntar quais foram as motivações para tal crime. Observando o governo de Ramsés III, percebe-se que o rei tinha preferência pelos membros da elite do Baixo Egito e, de certa forma, excluía os do Alto Egito, o que pode ter gerado um certo remorso e competitividade. O reinado também foi marcado por problemas de corrupção, incursões de povos vizinhos no Egito e complicações administrativas. As incursões e derrotas desses povos estão registradas no templo funerário de Ramsés III, Medinet Habu, um dos monumentos erigidos pelo rei por conta da situação de estabilidade em que o Egito se encontrava, apesar dos ataques exteriores. O templo em si, bem como o as representações do governante, foram baseadas no reinado de Ramsés II.[6] Quanto às complicações administrativas, podemos citar, no âmbito palaciano, o casamento do faraó com duas grandes esposas, ao invés de uma como era a prática. A primeira, que já mencionamos, era Tiye, mãe de Pentawera. Ela era filha de nobres do Alto Egito. A segunda era Isis, filha de um alto funcionário de origem estrangeira, estabelecida no Baixo Egito. Isis deu luz à Ramsés. Os dois príncipes eram muito próximos ao pai e bem relacionados quanto à sucessão do trono, entretanto, a partir do ano 22 de reinado, Ramsés III escolheu o filho de Isis, Ramsés, para ser seu herdeiro. Portanto, houve a condenação de um e a elevação de outro, apesar dos dois terem o mesmo direito à coroa. Além disso, a promoção de modificações dos títulos na área monumental e a construção diferenciada de tumbas aumentou a desigualdade, fomentando a rivalidade entre irmãos.

O assassinato de Ramsés III foi levado a cabo, conforme mostrou as imagens do TAC, porém, a conspiração foi descoberta e, assim, Pentawera acabou por ser responsabilizado e Ramsés IV assumiu o trono por cerca de 7 anos. É possível que Pentawera seja a famosa “múmia que grita”. Um rapaz de 18 a 22 anos de idade quando morreu, identificado hoje como “Homem desconhecido E”. Foi descoberto na mesma época e na mesma tumba que Ramsés III. Diferente de outras múmias, esta foi preservada sem que houvesse a remoção dos órgãos internos e sem emprego de faixas de linho ou preservação do nome, tendo sido enfaixado com pele de carneiro e, possivelmente, estrangulado ou enforcado, dado os elementos identificados no TAC e sua expressão de contorção.

 

[1] BRANCAGLION, Antonio. Quadro Cronológico – Lista de Reis. Laboratório Seshat. Museu Nacional UFRJ.

[2] HAWASS, Zahi; ISMAIL, Somaia; SELIM, Ashraf; SALEEM, Sahar N; FATHALLA, Dina; WASEF, Sally; GAD, Ahmed Z; SAAD, Rama; FARES, Suzan; AMER, Hany; GOSTNER, Paul; GAD, Yehia Z; PUSCH, Carsten M & ZINK, Albert R. Revisitin the Harem conspiracy and death of Ramesses III: anthropological, forensic, radiological and genetic study. Christmas. 2012.

[3] HAWASS, Zahi; SALEEM, Sahar. Scaning the pharaohs: CT Imaging of the New kingdom Royal Mummies.

[4] GALLARDO, Francisco L. Borrego. Un rey, un háren y magia negra: el asesinato del faraón Ramsés III. Universidad Autónoma de Madrid.

[5] Idem.

[6] BAINES, John; MÁLEK, Jaromír. A civilização egípcia. Grandes civilizações do passado. Folio.

Referências Bibliográficas

BAINES, John; MÁLEK, Jaromír. A civilização egípcia. Grandes civilizações do passado. Folio.

DESPLANCQUES, Sophie. Egito Antigo. Porto Alegre. L&PM pocket. 2013.

GALLARDO, Francisco L. Borrego. Un rey, un háren y magia negra: el asesinato del faraón Ramsés III. Universidad Autónoma de Madrid.

HAWASS, Zahi; ISMAIL, Somaia; SELIM, Ashraf; SALEEM, Sahar N; FATHALLA, Dina; WASEF, Sally; GAD, Ahmed Z; SAAD, Rama; FARES, Suzan; AMER, Hany; GOSTNER, Paul; GAD, Yehia Z; PUSCH, Carsten M & ZINK, Albert R. Revisitin the Harem conspiracy and death of Ramesses III: anthropological, forensic, radiological and genetic study. Christmas. 2012.

HAWASS, Zahi; SALEEM, Sahar. Scaning the pharaohs: CT Imaging of the New kingdom Royal Mummies.

JOHNSON, Paul. O Egito Antigo. 2010.

WILKINSON, Richard H. Egyptology today. Cambridge. 2008.

E-Referências

ALENCAR, Lucas. Pesquisa revela detalhes do assassinato do faraó Ramsés III. In: Revista Galileu online. 2016. Disponível em: Acesso em 04/2019.

CIÊNCIA E SAÚDE. Tomografia revela que faraó egípcio teve garganta cortada.In: G1.Globo. 2012. Disponível em: Acesso em 04/2019.

COSTA, Márcia Jamille. Ramsés III foi assassinado com corte na garganta. 2012. Disponível em: Acesso em 04/2019.

CULTURA. Revelado mistério da morte do faraó Ramsés III. In: JN. 2012. Disponível em: Acesso em 04/2019.

DALEY, Jason. CT Scan shows pharaoh Ramesses III was murdered by multiple assassins. In: Smithsonian. 2016. Disponível em: Acesso em 04/2019.

OLIVETO, Paloma. Ciência revela complô de 3 mil anos: Ramsés III teve garganta cortada. Disponível em: Acesso em 04/2019.

PRESSE-FRANCE, Agência. Ciência revela complê de 3 mil anos: Ramsés III teve garganta cortada. In: Correio Brasiliênse. 2012. Disponível em: Acesso em 04/2019.

HALE, Tom. CT Scan reveal brutal injuries on pharaoh Ramesses III. In: IFLScience. 2016. Disponível em: Acesso em 04/2019.

BJM, The. Egyptian Pharaoh. The Mummy of king Ramesses III. In: Live Science. 2016. Disponível em: Acesso em 04/2019.

ESPETACULAR, Domingo. Faraó Ramsés III e a múmia que grita. In: Rede Record de Televisão. 2018. Acesso em 04/2019.

 

[1] BRANCAGLION, Antonio. Quadro Cronológico – Lista de Reis. Laboratório Seshat. Museu Nacional UFRJ.

[2] HAWASS, Zahi; ISMAIL, Somaia; SELIM, Ashraf; SALEEM, Sahar N; FATHALLA, Dina; WASEF, Sally; GAD, Ahmed Z; SAAD, Rama; FARES, Suzan; AMER, Hany; GOSTNER, Paul; GAD, Yehia Z; PUSCH, Carsten M & ZINK, Albert R. Revisitin the Harem conspiracy and death of Ramesses III: anthropological, forensic, radiological and genetic study. Christmas. 2012.

[3] HAWASS, Zahi; SALEEM, Sahar. Scaning the pharaohs: CT Imaging of the New kingdom Royal Mummies.

[4] GALLARDO, Francisco L. Borrego. Un rey, un háren y magia negra: el asesinato del faraón Ramsés III. Universidad Autónoma de Madrid.

[5] Idem.

[6] BAINES, John; MÁLEK, Jaromír. A civilização egípcia. Grandes civilizações do passado. Folio.

 

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