Pensamentos do Antigo Egito: o diálogo entre o homem desesperado e o seu bá

Por Ewerson Dubiela –  Historiador do MuseuEgípcio

Como produção literária dos antigos egípcios, o chamado diálogo entre o homem desesperado e o seu bá é um dos textos mais discutidos e debatidos no meio acadêmico, possuindo mais de setenta artigos e traduções com diversas explicações desde o ano de 1896. A obra foi classificada de diversas formas como, por exemplo, sendo parte de uma autobiografia de um nobre ou como a memória pós suicídio de um líder de uma revolta através de um discípulo. Mais recentemente, tem se considerado o fator de uma discussão de valor a respeito da morte e da relação entre vivos e mortos.

Por qual motivo há tantas interpretações acerca de um único texto? Um dos motivos principais é o fato de ter chegado à nossa época apenas uma cópia, presente no papiro de Berlim, 3024. Tal papiro é datado da XII Dinastia (2040-1640 a.C.), possui 155 colunas verticais com a escrita hierática – esta possuía uso sacerdotal e derivava diretamente dos hieróglifos. Sua forma de grafia está bem feita, mas ainda assim possui erros e omissões, bem como outros papiros com outras histórias, e por isso pode ser uma cópia do original que deve ter sido produzido décadas antes. Quanto ao tamanho do papiro Berlim, 3024, atualmente possui de 15,9 cm à 16,4 cm de altura e 326 cm de comprimento, podendo ter perdido cerca de 66 cm de seu início. Recentemente, a pesquisadora espanhola Marina Escolano Poveda encontrou parte do início do texto que ainda está em análise. O documento foi encontrado na cidade de Luxor no ano de 1830 junto com outros três papiros, os manuscritos B1 e B2 do texto O camponês eloquente e o manuscrito B com um texto que já abordamos: o Conto de Sanehet. Sabe-se que os textos foram produzidos por diferentes escribas da época do faraó Amenenhat III (1844-1797 a.C.), pois possuem diferentes formas de caligrafia.

Quem são as personagens desse conto? Primeiramente existem apenas duas personagens, o homem e o bá, o qual podem ser definidos como “ser” e “alma”. Portanto, o diálogo se desenrola pela conversa entre esses dois protagonistas. Como o início está perdido, o nosso texto começa na metade da fala do homem que demonstra um certo temor por seu bá deixar o seu corpo no dia de sua morte. Entretanto, o bá recusa a morte e o homem argumenta que sua alma deve permanecer junto dele quando o momento chegasse. Há um motivo para essa discussão estar em volta de um tema carregado como “a morte”. O homem pede duas vezes para que o Ocidente, ou seja, o mundo dos vivos, se torne mais leve, a primeira para o seu próprio bá, sua alma, e a segunda para os deuses. Observa-se que apesar do desespero do homem, ele ainda pede que sua vida terrena seja mais leve e que seu bá tenha paciência e que o deixe partir naturalmente e não de maneira forçada. Mesmo assim, o bá pensa na morte imediata, pois quer ir para o mundo dos deuses. Trata com futilidade os preparativos funerários e fala ao homem sobre as tristezas de um enterro. De maneira literária, esse momento pode ser uma crítica do autor quanto ao protocolo funerário tradicional.

A partir daí, parece que há uma troca de posicionamento entre o homem e o bá, pois a alma lhe diz: “Ouve-me! Eis que é bom para um homem quando ele ouve. Sê alegre um dia, não te preocupes!” E então, defendendo a vida, a alma cita duas parábolas para incentivar o homem, a parábola do fazendeiro e a da refeição matinal.

A primeira parábola trata com ênfase a morte irreparável, ou seja, aquela em que não houve chance de viver:

Um homem humilde lavra seu pedaço de terra e carrega sua colheita num barco. Faz sua viagem rebocando o barco, pois se aproxima seu dia de festa. Ao ver chegar o anoitecer com o vento norte, fica vigilante no barco quando Ra se deita e assim sai com sua mulher e seus filhos, mas acontece o desastre no lago infestado de crocodilos à noite. Então ele se senta, quebra o silêncio e diz: Não choro por aquela mãe, que não pode voltar do Ocidente para viver outra vez na terra. Penso nos seus filhos quebrados no ovo, que viram o rosto do crocodilo antes de poderem viver.

A segunda indica a ideia de um desejo antes da hora apropriada, que no contexto da obra se coloca como “apressar o momento da morte”. Mas também que uma situação feliz pode mudar a qualquer instante, portanto uma reflexão para aproveitar a vida.

O homem humilde pede a refeição matinal, mas sua mulher lhe diz: é para o jantar. Ele sai porta afora reclamando e ausenta-se por algum tempo. Ao voltar para casa é como se fosse outro homem, sua mulher lhe implora e ele não a ouve porque continua a reclamar, sem prestar atenção a ninguém.

A resposta do homem acaba se apresentando numa série de quatro poemas que, de maneira resumida, tratam de questões da moralidade egípcia daquele momento – que se encontrava em decadência. Tais poemas mencionam rebelião contra o rei, brigas entre amigos e irmãos, o desejo de morte e a impressão de repelência dos deuses. A última fala, que pertence ao bá, mostra uma reconciliação entre o homem e a alma. Esta tem um papel de apologia à vida e um compromisso final que rejeita a morte prematura e aceita a morte natural: é a morte natural que permite ao egípcio ter felicidade no outro mundo e, ao final, a reconciliação do ser. O texto é finalizado com um colofão que diz: “Acabou do princípio ao fim, tal como estava no escrito”. Assim, o texto é em termos atuais, bastante filosófico, um pensamento sobre vida e morte, um ensinamento de uma parte da cultura egípcia antiga.

Busto do faraó Amenenhat III – XII Dinastia – Museu do Cairo – Cairo – Egito.

Representação do Bá da rainha Nefertari – XIX Dinastia – Tumba de Nefertari – Vale das Rainhas – Luxor – Egito.

 

Papiro de Berlim, 3024 – Diálogo entre o homem desesperado e o Bá – XII Dinastia – Altes Museum – Berlim – Alemanha

 

Referências bibliográficas

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CANHÃO. Telo Ferreira. Diálogo de um desesperado com seu ba. In: A literatura egípcia do Império Médio.

CHOBANOV, Yordan. A new interpretation of “the dialogue of a man and his ba”. Department for Mediterranean and Eastern Studies. Bulgarian Institute of Egyptology. New Bulgarian University, Sofia. 2015.

LICHTEIM, Miriam. Ancient Egyptian Literature. Vol. 1: The Old and Middle Kingdoms.

TRAUNECKER, Claude. Os deuses do Egito. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995.

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