O Conto do Náufrago

Foi durante o período que conhecemos como Reino Médio (2040-1640 a.C.) que a literatura egípcia floresceu. Até o Primeiro Período Intermediário (2134-2040 a.C), grande parte dos textos eram autobiografias, presentes nas tumbas da elite egípcia, ou referências religiosas, como o Texto das Pirâmides. Durante o Reino Médio o acesso a escrita tornou-se mais próxima da elite, e textos utilizados no processo de aprendizado da língua egípcia foram elaborados. Assim, a literatura que passou a ser criada nesse momento estava associada à formação dos escribas e também tinha a intenção pedagógica de transmitir um ensinamento, geralmente relacionado as regras sociais, para os aprendizes. Com essa intenção, chegaram até nós hinos e narrativas sobre a vida e a moral egípcia, além de histórias fantásticas, como é o caso do Conto do Náufrago que aqui apresentamos.

O Conto do Náufrago, também conhecido como “A Ilha da Serpente”, foi escrito durante a segunda metade da XII dinastia, entre 1878 e 1797 a.C., nos reinados de Senusret III ou Amenenhat III. Os títulos são modernos, pois dificilmente os egípcios davam nomes para os seus textos. Embora, possivelmente, tenha sido copiado por muitos apendizes de escribas que passavam pelo processo de ensino, conhecemos apenas um único manuscrito com o conto em questão, o papiro Ermitage 1115, presente na coleção do Museu Pushkin, em Moscou – Rússia. Produzido em hierático, escrita egípcia utilizada principalmente em papiro, possui 3,80 metros de comprimento por 12 cm de largura. Foi transcrito para caracteres hieroglíficos em 1913, por Golénischeff, pesquisador que encontrou o papiro em um armário do Museu Hermitage, em São Petesburgo, em 1881. Desde então, tem sido interpretado por vários egiptólogos que se dedicam à literatura do Egito Antigo.

O conto apresenta-nos três personagens: o comandante de uma embarcação -possivelmente responsável por uma missão real à Núbia, o companheiro excelente que narra a história e o deus serpente. No conto há três histórias relacionadas a cada uma das personagens. No início o capitão da embarcação demonstra sua preocupação, ao passo que o companheiro excelente, que também é o narrador da história tenta animar o seu interlocutor. Assim, decide contar uma história que ocorreu consigo em um momento de desespero, quando único sobrevivente de um naufrágio no Nilo acabou indo parar em uma ilha. Neste lugar, depois de três dias sozinho, encontra-se com uma serpente gigante, senhor da Ilha do Ka, onde nada faltava. A serpente que tinha os atributos dos deuses como a barba de lápis lazuli e corpo de ouro, o ameaça caso não contasse como fora parar ali. Após a serpente escutar sua história como único sobrevivente de um acidente que havia ocorrido com uma embarcação que levava os marinheiros mais experientes do Egito, a serpente também narra a sua própria história. Conta que na ilha viviam setenta e cinco serpentes como ela, até que uma catástrofe ocorreu e ela era também a única sobrevivente do ocorrido. O deus serpente profetiza que o náufrago passaria um tempo na ilha, até que fosse resgatado e morreria em solo egípcio, junto de sua família. A profecia cumpre-se e quando o náufrago está pronto para retornar, a serpente o presenteia com diversos produtos muito valorizados pelos egípcios. Quando chegou ao Egito foi recebido pelo faraó e concedeu os presentes da serpente ao rei, sendo igualmente presenteado com duzentos servos. O comandante que havia escutado a história, não acredita que com ele a situação será igual e permanece pessimista quanto ao seu fim.

Os textos elaborados durante o Reino Médio, como dissemos, tinham como uma de suas missões o ensinamento, mas o que um conto ficcional como esse poderia ensinar sobre a moral e a cultura egípcia? Por exemplo, expressões utilizadas no conto mostram a importância de saber ouvir para o egípcio, esta era uma virtude da qual dependia a vida social. Também o risco de morrer fora do Egito e longe da família que não poderia realizar as cerimônias relacionadas à crença na vida além-túmulo. Pesquisadores como Telo Ferreira Canhão e John Baines acreditam que ele possui uma interpretação literal e outra simbólica, na qual informações sobre a religião egípcia estão presentes, porém apenas os iniciados no conhecimento religioso poderiam compreender.

Entre outras informações importantes podemos destacar o nome da ilha: Ka era a palavra egípcia para a energia vital do indivíduo, bem propício para um local que no conto representa a fartura de alimentos. Outro ponto importante é que a serpente é também mencionada como governador de Punt, região da qual provinha desde o Reino Antigo a mirra, o incenso e outras substâncias aromáticas, bem como ouro, marfim, madeiras exóticas e diversas espécies animais, locais ou provenientes de outras regiões africanas. Este era um território parceiro comercial do Egito Antigo e foi referenciado até a época Greco-Romana.

Outro fato incomum relacionado ao Conto do Náufrago é ter a assinatura do escriba que o copiou, Amenaá, filho de Ameni. Dificilmente encontramos o responsável pela cópia do texto. Esse fato pode nos levar a pensar que ele, ou seu pai, foram pessoas importantes em seu período. Também se acredita que havia uma introdução ao conto hoje perdida e que explicaria melhor as personagens e o drama do comandante da embarcação.

Outros aspectos sobre a sociedade egípcia antiga podem ser encontrados no Conto do Náufrago, pois como dissemos, esses textos dedicavam-se a formação de futuros escribas. Assim, encontramos neste conto componentes mitológicos em relação a interação do náufrago com a divindade, o pensamento religioso egípcio, além de preceitos sobre a conduta em sociedade.

Por: Vivian Noitel Valim Tedardi – Historiadora

Wladimir Golenischeff que encontrou o papiro no Museu Imperial de São Petesburgo e o traduziu pela primeira vez

Bibliografia

ARAÚJO, Emanuel. Escrito para a eternidade: a literatura no Egito faraônico. UNB, Brasília, 2000.

BAINES, Jhon. Interpreting the Story of the Shipwrecked Sailor. Journal of Egyptian Archaeology, 1990. p.55-72.

BRANCAGLION JUNIOR, Antonio. O Conto do Náufrago – Papiro Ermitage 1115. Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

CANHÃO, Telo Ferreira. O Conto do Náufrago – um olhar sobre o Império Médio. Universidade de Lisboa, Lisboa. 2000.

CARDOSO, Ciro Flamarion. Escrita, sistema canônico e literatura no Antigo Egito. In: Jornada de estudos do Oriente Antigo: línguas escritas e imaginárias. EDIPUCRS, Porto Alegre, 1998.