O conto de Sanehet

O conto de Sanehet – conhecido também por Sinuhê – é um dos mais antigos textos de criação dos egípcios. Sanehet é protagonista dessa saga da literatura nilótica, entretanto não há provas de sua existência, tampouco imagens que possam ilustrá-lo. Assim, apenas os textos desse conto nos chegaram com seu nome. A coletânea é datada da XII Dinastia (1991-1793 a.C.), mas muitas das fontes são de períodos posteriores. A cópia mais conhecida e utilizada pelos pesquisadores que desejam fazer traduções e análises é o papiro de Berlim P3022, além de contarem com o Papiro Ramesseum (Berlim 10499). Os dois estão fragmentados, mas se completam e nos oferecem o texto na íntegra.

O nome da personagem Sanehet pode ser traduzido como “Filho do Sicômoro”. Mas, afinal de contas, quem foi Sanehet? Como vimos antes, não há provas da existência dessa personagem, entretanto, ao iniciar o texto, o protagonista se apresenta como um shemesu, ou seja, um membro militar de elite, encarregado da proteção da princesa Neferu, filha do faraó Amenenhat I e esposa do príncipe Senusret I. Fora isso, o nosso personagem declara-se de serviço nas terras dos tjemehu, um povo estrangeiro de provável localização na atual Líbia – à oeste do Delta do Nilo. É provável que Amenenhat I tenha sido assassinado, sabe-se disso por conta de outra história: as instruções de Amenenhat para Senusret – no Conto de Sanehet, o motivo da morte do rei não é mencionado.

Ao ouvir sobre a morte do faraó, Sanehet ficou apavorado e esse medo o levou à uma fuga que só terminaria quando estivesse idoso. O motivo também não é relatado e apenas podemos pensar sobre uma conspiração a qual o nosso protagonista ficou a par de alguma forma. Fugindo, Sanehet declara os lugares por onde passou até chegar às cidades de Qeden (possível bíblica Jericó) e Biblos, seu destino final. Nessa última cidade, ele conhece o príncipe Amunenshi que o acolhe, lhe dá terras, riquezas, uma tribo e sua própria filha em casamento. A terra, chamada Iaa, é descrita no conto como um lugar onde “havia figos e também uvas, e tinha mais vinho do que água. Seu mel era copioso e seu azeite abundante. Em suas árvores havia toda espécie de fruta. Também havia ali muita cevada e trigo, e os rebanhos de todo tipo eram inumeráveis”. E assim, Sanehet viveu em terras estrangeiras sendo um homem de confiança do príncipe Amunenshi. Entretanto, não esperava o dia em que “um homem forte do retenu” o desafiasse, afinal, além de deter a confiança de Amunenshi, era também um Shemesu egípcio, um soldado de elite.

Durante a noite, Sanehet preparou-se para o duelo iminente, relatando-o e descrevendo como venceu o guerreiro estrangeiro. Com o calor da batalha já superado, o nosso protagonista tem um sentimento de saudade por sua terra natal e pede para que o deus que o tirou do Egito tenha misericórdia e permita que ele possa voltar para casa. No texto, o nome desse deus não aparece e mesmo Sanehet o desconhece, ele diz: “qualquer que tenha sido o deus a ordenar essa fuga, tem misericórdia e leva-me de volta para a Residência! Decerto deixarás que eu reveja o lugar onde mora o meu coração!”.

O episódio da batalha contra o “homem forte de Retenu” parece ter ficado famoso mesmo naquela época, pois o conto de Sanehet indica que o rei Senusret ouviu falar da situação da personagem e assim, lhe enviou uma carta questionando o antigo soldado sobre sua fuga do Egito e ordenou que voltasse à terra natal. Senusret I sabia que Sanehet não era culpado pela morte do antigo faraó, Amenenhat I – mesmo assim, a personagem se desculpa por ter fugido e acata a ordem do rei egípcio. O último dia do protagonista na terra de Iaa foi marcado pela divisão dos seus pertences para os seus filhos, onde o mais velho ficou no comando da tribo. Sanehet fez seu caminho de volta ao Egito, onde foi recepcionado pelas tropas de Senusret na fronteira egípcia e levado à capital, It-Tawy, aonde a família real o aguardava. Quando chegou, o confundiram com um asiático, mas foi barbeado, penteado, vestiu roupas egípcias e logo voltou a ser o egípcio que servira ao seu rei vários anos antes. Sanehet ganhou uma casa e uma tumba para preparar-se para o outro mundo. Terminou sua vida já idoso e perdoado pelo faraó.

Esse texto foi efetivamente conhecido pela classe dos escribas ao longo de mais de 700 anos. O mesmo foi produzido durante um período em que as Instruções, textos que demonstram valores e a moral egípcia, foram escritas e nessa modalidade, a coletânea também transmite formas de mostrar ao leitor a vida ideal egípcia e a sabedoria real e divina. Por isso, essa produção é a mescla de uma possível autobiografia egípcia, instruções de sabedoria e rituais de renovação divina.

Ewerson Dubiela
Historiador do Museu Egípcio